sábado, 6 de agosto de 2011

Trocadilos ao contrário

O que chamamos de "normalidade" é, na verdade, uma socialização imposta à base de repressões. Seu intuito é o de obtermos e perpetuarmos os benefícios - e neuroses - da continuação social. Podemos compará-la a uma religião, em que o progresso e o consórcio social ocupem o lugar do paraíso prometido - e a educação formal, uma conversão. Normal não é necessariamente natural, mas sim aquilo que está dentro das normas determinadas pela sociedade, sem desvios de comportamento em comparação com a maioria, que, aliás, mudo com o tempo. Se o que era loucura ou perversão ontem, hoje é extroversão, isto implica dizer que aqueles que hoje chamamos de loucos, poderão vir a ser nossos pioneiros amanhã.

Sem as convenções pré determinadas, como seria o ser humano? O que resultaria de um ser in natura? Sem a educação social, estaria submetido aos seus instintos. Como os ditos "loucos". Como somos seres de matilha, concordo que provavelmente construiríamos outra cultura com chefes e hierarquias a seguir. Mas neste momento inicial, sem a necessidade de seguir regras gramaticais ou racionais previamente acordadas pela sociedade, diria o que pensa, podendo dar maior vazão ao lado subjetivo de sua psiquê. Em última análise, não teria tantas neuroses, uma vez que não se submeteria aos conflitos oriundos da repressão indispensável para que formemos nosso "conteúdo", nosso "estilo", nossa "classe social", nossa "religião", nossa "família", nossa "maneira de pensar" - que se constitui basicamente de exclusões e negações, em geral selecionados por outros.

Isso me faz lembrar de Estamira Gomes de Souza, mulher negra da classe trabalhadora, catadora de lixo no Aterro do Gramacho (Rio de Janeiro) que nasceu ao contrário, no dia 27 de julho. Tinha 72 anos e morreu cansada, mal cuidada e principalmente: não ouvida (paradoxalmente tão escutada no mundo inteiro). A protagonista do filme que leva seu nome, dirigido por Marcos Prado e lançado em 2004 (que tive o privilégio, como inúmeros acadêmicos, de assistir no banco universitário) agonizou por horas no Hospital Miguel Couto, na Gávea, desassistida pelo SUS e incapaz – como a imensa maioria dos trabalhadores – de comprar sua assistência em um hospital particular.

Os "trocadilos" apontam que a razão de sua morte se chama 'septicemia', uma infecção generalizada. Poderiam dizer que por ter transtornos mentais, Estamira deveria ter sido assistida em um asilo, ou um hospital/hospício psiquiátrico para que de lá não saísse e morresse em paz, longe do lixo, das moscas, longe da família, longe daquele mar que lhe era tão importante. Do outro lado, os que acreditam cegamente nos governos, acreditam que a construção da rede de atenção psicossocial substitutiva à lógica manicomial está consolidada, amplificada e atuante. Não desconsideramos os avanços da instalação da rede, determinada pela lei 10216/2001. Mas, como Estamira nos alertou: existe esperteza ao contrário, não inocência.

De toda forma, Estamira passou sua vida em pé, trabalhando, replicando sua existência dentro dum lixão, desatenta aos levantes manicomiais de empresários-da-saúde-mental que discorrem trocadilos sobre técnicas arcaicas repaginadas, assistência integral, novos medicamentos, cuspindo cifras.. Alheia aos professores de Psicologia que passam o filme nas aulas e todos saem das salas com mal estar, surpresos, com pena. No ano que vem, uma nova turma assistirá sua história. Tudo bem: esta arte nos permite a distância, a contemplação, o não envolver-se e o não implicar-se.

Escutamos Estamira e observamos mais uma que sofre numa massa de trabalhadores negros, homens e mulheres que apodrecem todos os dias. Estamira é apenas mais uma entre os milhares de loucos da classe trabalhadora que já não valem mais nada ao sistema do capital e que por isto – e só por isto – são jogados no lixo para se confundirem ao inútil e ao descuido nos aterros e favelas do país.

O cinismo deste sistema traveste seu discurso delirante, denunciativo, agressivo e violento em “poesia”, “uma forma atípica de expressão”, “obra de arte”. Esta forma de arte não nos importa. Não queremos lembrar de Estamira apenas quando seu filme recebe mais um prêmio internacional. Acreditamos que não basta lamentar sua morte em cento e quarenta caracteres, num pio. Reivindicamos a vida e obra produzida ao longo dos dias de vida de Estamira. Com todos os seus direitos humanos negados, todos os serviços de saúde de má qualidade, sua péssima condição de moradia, seu trabalho precarizado, a educação negada. Seus e de todos os trabalhadores.

Não nos interessa a mera constatação de que algo vai errado. Interessa a luta pela efetividade da atenção à saúde mental no Brasil. Interessa a consolidação de equipes multidisplinares, a efetivação da Reforma Psiquiátrica, a redução de danos, a porta aberta nos equipamentos, a defesa intransigente de uma vida digna e sem desigualdade social para todos os trabalhadores. Lutando, honramos Estamira e todos os seus irmãos e companheiros desconhecidos, que nunca estrelarão um filme mas que também querem visitar o mar.