Boa Tarde!
Fé, coragem e persistência. Esses são alguns dos adjetivos que podem ser atribuídos a Everaldo da Costa. O homem residente em um bairro periférico de Vilhena, segue todos os dias para sua luta: fazer cobranças de duas lojas. E para dificultar um pouco mais sua jornada diária, pedala uma bicicleta com uma só perna. Esse perfil foi confeccionado por Raquel Jacob Gonçalves para atender a disciplina de Técnica de Entrevista Jornalística, ministrada pela Professora Patrícia da veiga Borges, em 2008. Boa leitura e boa descoberta.
Uma só perna sobre duas rodas
(Por: Raquel Gonçalves Jacob)
Segunda-feira. Cinco horas da manhã e o sol ainda não acordou. As casas, as flores, as pessoas, todas dormem. Menos os trabalhadores que pedalam suas bicicletas para se dirigirem ao trabalho. São mais de uma centena de magrelas que carregam os funcionários do frigorífico, ainda sonolentos e cansados. Observando a movimentação pelo barulho que as rodas fazem ao deslizar no asfalto está Everaldo da Costa, 47 anos, cobrador de uma das mais antigas lojas da Avenida Melvin Jones, e morador aos fundos do estabelecimento há quatro anos. “Acordo todos os dias quando ouço as bicicletas passarem, em geral eles andam em silêncio porque ainda tão com sono, por isso dá pra ouvir o barulho das bicicletas que já são mais surradinhas e batem bastante o pára-lama e outras peças que tão meio soltas”.
Depois de ser acordado pelas bicicletas e fazer um momento “a sós com Deus”, quando lê a Bíblia e ora, Everaldo toma um café preto para despertar, já em companhia da família, que acorda cedo por causa das meninas que vão para a escola. “Às vezes o café é medroso, aí vem acompanhado com pão caseiro e margarina, mas tem dias que ele fica corajoso e por isso vem sozinho”, fala o homem com sorriso nos lábios e em uma das mãos um copo que antes servira para armazenar extrato de tomate, agora cheio de café. Com a outra mão ele abre o portão para que eu entre. A cozinha de madeira, com uma mesa e quatro cadeiras de parafusos bambos, uma geladeira caramelo, uma pia, um fogão pequeno e uma prateleira de madeira; na outra extremidade do cômodo, um sofá e uma estante pequena de madeira, já com o verniz descascando; a TV de 14 polegadas ligada com a imagem chuviscada que a antena interna consegue transmitir. O cenário dá a impressão de uma casa simples e com pouco conforto.
Enquanto tomava café, ele me convidou para com ele fazer uma oração e ler um trecho da Bíblia em Mateus, capítulo 6, versículos de 19 a 21: “Não ajunteis para vós tesouros na terra; onde a traça e a ferrugem os consomem, e onde os ladrões minam e roubam; mas ajuntai para vós tesouros no céu, onde nem a traça nem a ferrugem os consumem, e onde os ladrões não minam nem roubam. Porque onde estiver o teu tesouro, aí estará também o teu coração”. A leitura foi acompanhada pelos olhos atentos da esposa, Dona Marlene, de 39 anos, e as duas filhas de 13 e 11 anos. “Sabe, eu não me preocupo em ter riquezas, porque um dia eu vou embora e não vou levar nada, tudo isso vai ficar por aí”.
O homem religioso ao extremo é membro da Igreja Assembleia de Deus, também situada na Avenida Melvin Jones. Estatura mediana, cabelos castanhos e crespos, mantidos em corte baixo, tipo físico magro, bermuda de brim e camiseta de malha colorida. Seria a descrição de um homem comum, não fosse o fato de ele ter apenas uma perna (a outra ele perdeu na altura da coxa em um acidente que sofreu quando tinha 17 anos).
Ao terminar o café, ele se prepara e vai trabalhar. Everaldo é aposentado por invalidez, mas só com o salário mínimo não consegue sustentar a família. O casal trabalha na loja de confecções que fica na frente da casa, em uma mesma construção. A mulher é responsável pela limpeza e pelo atendimento na lojinha, enquanto ele faz as cobranças. Everaldo ainda presta serviços para outra loja, no centro da cidade, também como cobrador. “Tem dias que é difícil trabalhar porque tem gente que dá nó até em pingo d’água, entende? E aí não consigo receber nada”, afirma, ao explicar que ganha a comissão em porcentagem sobre o que consegue receber dos clientes. Em troca do trabalho, o casal recebe a casa dos fundos da loja para morar: dois quartos, sala e cozinha juntas, um banheiro e uma área de serviços.
Já na loja, o homem aguarda a chefe separar as notas que estão vencidas. Com os papéis em uma pasta, ele parte em busca do sustento da família. O trabalho é todo feito de bicicleta. Para subir no veículo, Everaldo encosta-o no meio fio e passa o toco de perna por cima do quadro até se aconchegar no banco da magrela. Assim que saímos, perguntei a ele como conseguia manter o equilíbrio. “É prática, ando de bicicleta desde os meus seis anos, quando eu ainda morava no sítio e andava mais de 20 Km para ajudar meu pai na lavoura. Quando perdi a perna, foi só uma questão de acostumar”, explica. O acidente que o fez perder a perna foi em uma estrada vicinal próximo de Araputanga, interior de Mato Grosso, onde viveu até seus 20 anos, quando se casou pela primeira vez. “Peguei uma carona com o carro do leite para ir até a cidade, que a gente morava no sítio, aí o carro bateu com um caminhão boiadeiro que tava vindo no sentido contrário, entende? Aí eu caí e fiquei desacordado. Quando voltei em si eu tava no hospital em Cuiabá e depois de três dias descobri que tinham amputado a minha perna, os médicos explicaram lá, mas eu não entendi muito, sei que foi Deus que quis assim”. A narrativa foi seguida por silêncio.
Três quadras depois: “o sol está quente hoje, né?”, eu tentava puxar assunto outra vez. Everaldo gosta de falar bastante, mas quando se entristece com algum assunto, se retrai e mantém-se trancado dentro de si. Aos poucos, ele volta a falar. Conta que depois do acidente não teve mais como trabalhar a terra, então teve que se mudar para a cidade, para a casa de um tio, afinal, precisaria do acompanhamento médico que não poderia ter no sítio. Depois que se recuperou, já trabalhou como vendedor ambulante de utensílios domésticos, como zelador, e agora trabalha há três anos como cobrador.
Foi na cidade que conheceu a ex-mulher, Maria de Lourdes, com quem viveu seis anos e teve um filho agora com 25 anos, o mecânico Paulo Silva da Costa, que ainda mora em Araputanga. Para eles, a vida era muito complicada por causa da dificuldade financeira. As necessidades iam desde moradia até alimentação e por isso resolveram se mudar para a região sul de Rondônia, fixando residência em Colorado do Oeste, onde a vida continuou difícil. “Até que um dia eu falei pra ela, ‘olha, eu te tirei da casa do seu pai onde você tinha as coisas pra te trazer pra essa vida de miséria, e isso não está certo’, peguei ela e o menino, levei de volta pra Araputanga e deixei lá na casa do pai dela. Falei que o dia que as coisas mudassem eu voltava pra buscar eles. Quanto voltei, depois de dois anos, ela já tava com outro”.
A decepção amorosa fez com que Everaldo vivesse por cinco anos apenas pensando na própria sobrevivência. O filho ele passou a ver a cada dois anos, e por agora, não o vê há 11 anos. “Eu tinha vontade de conhecer meu irmão. De vez em quando o pai liga pra ele e eu até já falei com ele no telefone uma vez, mas não é a mesma coisa”, fala a filha mais velha do segundo casamento. A mais nova se limita apenas a afirmar que queria mesmo ver como é o irmão.
Com o tempo, Everaldo conheceu seu Sérgio Adão, que também frequenta a igreja. A filha de Sérgio, Marlene, acabou se tornando a nova paixão de Everaldo. “Ah quando eu a vi pela primeira vez, gostei e depois de um tempo, como o pai dela fazia muito gosto e era muito meu amigo, a gente acabou casando, desta vez, de papel passado. Já tem 14 anos e é pra vida toda”.
A casa de Sérgio Adão, 73 anos, fica há duas quadradas de onde mora a filha. O casebre de madeira fica entre dois pontos comerciais e tem cinco cômodos e uma área. Com telhas de zinco, cerca de madeira e beijo-de-estudante plantados na frente, a casa representa a arquitetura de grande parte das moradias na Avenida Melvin Jones. Na sala, em um sofá de tecido azul surrado e poído, um senhor de cabelos brancos, bigodudo e de pequena estatura fala sem parar. Carioca, seu Sérgio, conta histórias de aventuras sem limites, algumas que incorporou de relatos ouvidos, dos quais ele se coloca sempre como o protagonista. “O Everaldo eu conheci quando trabalhou comigo numa firma. Gostei dele porque era muito esforçado, quando muitos que têm o problema que ele tem iriam querer viver às custas do governo. O rapaz começou a ir na igreja a meu convite e depois passou a freqüentar minha casa e se enamorou da minha filha mais nova. A menina gostou dele e os dois acabaram casando. Dizem que sogro e genro é tudo é birrento um com o outro mas a gente se dá bem, porque tem o temor e o amor de Deus no meio, né?”, conta o aposentado.
Acaba o trabalho matutino, o estômago aponta que é meio-dia, hora do almoço. Everaldo vai para a loja e, em seguida, para sua casa. Depois de almoçar arroz, feijão, quiabo comprado na feira da avenida e carne moída, ele descansa enquanto ouve os principais acontecimentos da cidade pelo rádio. Depois, o homem volta à sua rotina sob a bicicleta em seu malabarismo diário de equilibrar-se com apenas uma perna.
Aos finais de semana, sua distração é a igreja. Mas, como é segunda-feira, Everaldo volta para casa depois de um dia cansativo, de muitas cobranças e pouco dinheiro em caixa. A noite é para descansar. Ele assiste TV com a mulher e as filhas. “O programa que ele mais gosta é jornal, pode ser da Globo ou do SBT, tanto faz, aliás ele gosta dos dois e nem deixa a gente ver a novela”, reclama a mulher. Com pulso firme, ele retruca: “Novela não edifica, não trás nada de bom pra gente, o bom mesmo é ver o jornal e saber o que está acontecendo”.
Quando o atrativo da TV não prende mais a atenção, Everaldo vai dormir. Para recomeçar no dia seguinte, quando as bicicletas vão acordá-lo outra vez.
Obs: Esse é um trabalho acadêmico produzido em 2008 e não remete totalmente a realidade atual. Se for utilizar favor citar a fonte e a autoria.